Marcos Ribeiro
INIMIGOS DA ARTE CONTEMPORÂNEA
Os dadaístas já diziam: ande com um martelo e acabe com a arte.
Wednesday, September 01, 2010
Sunday, August 22, 2010
SAUDADES DA PINTURA - DANIEL PIZA
Vou logo de saída dizendo que há bons pintores no mundo todo. A fase recente de um Cy Twombly (As Quatro Estações, 1993-94), por exemplo, é a melhor de sua história, embora ele seja – e provavelmente sempre vá ser – lembrado por seus garranchos propositalmente infantis dos anos 60. Lucian Freud, Frank Auerbach, David Hockney, Antoni Tàpies, Francesco Clemente – há vários outros veteranos em forma. Há gente mais jovem, na faixa dos 40-50 anos, como Anselm Kiefer e Manolo Valdés, que já assegurou lugar na história. Há gente que ainda merece maior reconhecimento internacional, como a americana Susan Rothenberg e a sul-africana Marlene Dumas. No Brasil, os talentos de Daniel Senise e Paulo Pasta são estabelecidos, Beatriz Milhases faz sucesso internacional e nomes como Gianguido Bonfanti aguardam um mínimo de atenção.
Mas é muito pouco, em qualidade e quantidade. Se você pensar que há cem anos o cenário era disputado por gente como Picasso, Matisse, Kandinsky, Mondrian, Klimt, Kokoschka, Klee, Munch, Bonnard e tantos, tantos mais... É claro que da literatura se pode dizer coisa semelhante, citando apenas o quarteto Proust, Joyce, Mann e Kafka. Mas onde estão o Philip Roth, o Ian McEwan, o Coetzee e o Vargas Llosa da pintura atual? Ou, para voltar ao Brasil, quem faz na pintura o que Milton Hatoum faz no romance e Fabrício Carpinejar na poesia? Os nomes que citei não têm seu frescor, sua densidade, sua ligação peculiar com uma tradição (Hatoum com Machado e Euclides; Carpinejar com Drummond e Cabral). Cadê os filhos ou netos de Volpi, Segall, Tarsila, Goeldi, Guignard?
Além disso, o que poderíamos batizar de Sistema Internacional das Artes Plásticas (SIAP) – o conjunto de professores, curadores e artistas formados em universidades que, ingênua ou mafiosamente, ditam as regras globais do que é contemporâneo e do que não é – só dá destaque para os autores de instalações, especialmente vídeo-instalações, para não falar dos happenings como os de Christo; é um domínio da arte conceitual que, embora iniciado com Duchamp e multiplicado nos anos 60 com Beuys, impera desde o final dos anos 80, logo depois de os últimos movimentos pela volta da pintura – como a Transvanguarda italiana ou a Geração 80 brasileira – terem dado seu suspiro. Quando entramos no território de duas dimensões, as bienais organizadas pelo SIAP dedicam muito mais espaço à fotografia. As pinturas, enfim, já não ocupam o mainstream. Regina Silveira, Amélia Toledo, Tunga, Nuno Ramos – nossos artistas mais importantes perdem muito pouco tempo com a pintura.
Os pintores têm sua culpa, claro. A maioria das telas que vejo nas bienais mundo afora, como na última de São Paulo, são tímidas, discretas demais, preocupadas em texturas que significam camadas de memória, passagens do tempo (o tema mais freqüente), presas a poéticas de sugestão que terminam vagas demais para se fixar em nossa memória visual. Exemplos: Marco Giannotti, Sergio Fingermann, Paulo Monteiro. Ou então temos os seguidores da arte concretista ou construtivista, que dizem não tratar de nada além do que de “arranjos de cores e formas”, num grau de representação zero. Exemplos: Cássio Michalany, Eduardo Sued, Carlito Carvalhosa. Mesmo Paulo Pasta tem ido a um extremo de “depuração” do qual sua estética em breve não terá como sair a não ser pela ruptura.
Não que a pintura tenha de ser figurativa, no sentido tradicional do termo; mas pense em grandes abstracionistas como o citado Mondrian ou Pollock, cujas linguagens foram gradualmente construídas a partir da observação meticulosa da natureza, da paisagem, e dialogam com a realidade urbana, com sua topografia (Mondrian) ou ritmo (Pollock). A música, em especial, é seu campo simbólico, do qual emerge sua personalidade. O autor se afirma na superfície; jamais se esconde.
Para tirar o pintor contemporâneo do seu esconderijo, do seu ensimesmamento, é preciso começar a contestar a ideologia vigente na crítica, segundo a qual o lugar da pintura num mundo midiático é a incomunicabilidade, o silêncio, a sutileza que quase se esvai no vazio. Isso já foi superado nas outras artes; Beckett e o nouveau roman, por exemplo, já passaram, e no cinema a vanguarda já não está com Antonioni e Godard. Mas no mundo das artes visuais o vanguardismo como doença infantil persiste, criando um hiato com o público não-iniciado (embora muitas vezes bem-informado e formado) e pregando uma pintura que, na comparação com a arte conceitual e escandalosa de um Damien Hirst, está mais marginal que nunca. É como se fosse um gênero démodé.
No Brasil, por exemplo, curadores como Nelson Aguilar e Paulo Herkenhoff, responsáveis por bienais e outras exposições com forte discurso sobre a arte brasileira como relevante para a cena internacional (muito mais relevante do que ela realmente foi e é), dizem que as instalações têm um poder de seduzir o espectador desde o aspecto sensorial até o intelectual. Logo, a pintura não teria esse mesmo poder, pelo simples fato de não ser tridimensional e não “exigir a participação física do público”, ou seja, não se prestar ao playground ideológico que costumam ser esses grandes eventos, essa ONU que o SIAP monta periodicamente.
Não espanta, assim, que a crítica brasileira considere que a melhor fase de Iberê Camargo, como os scribblings de Twombly, é a dos carretéis, em sintaxe expressionista abstrata; jamais dão a importância devida à sua última fase, dos seus últimos dez anos (1984-94), em que houve um “retorno à figura” – ou seja, o gesto considerado de supremo conservadorismo pelo SIAP. Ou que prefira Pollock a De Kooning. Ou Basquiat a Lucian Freud. Ou que ignore o trabalho de Bonfanti, que mistura a influência de Iberê e Flávio de Carvalho com a de Auerbach e Francis Bacon. Ou que simplesmente não reconheça que Di e Portinari eram grandes desenhistas. E não espanta que grandes nomes brasileiros da visualidade sejam hoje fotógrafos como Miguel Rio Branco, que por sinal vem prometendo retomar mais e mais a pintura.
Mas, ah, que saudades da grande pintura. E que sei que não só eu sinto, mas toda a multidão que vai a retrospectivas de – ou lê livros sobre – Rembrandt, Velásquez, Goya, Manet, Cézanne, Van Gogh, Balthus, Hopper, para não falar de renascentistas e não repetir modernistas. A pintura é um congelamento quente de uma imagem, a superfície que retém e conduz os olhos para um imaginário distinto, pessoal, ao mesmo tempo tão nosso que nos vemos ali. Em tempos de bombardeio audiovisual por TV e cinema, que mesmo na cena mais pictórica parece ter pressa de desviar o olhar para a cena seguinte, a pintura é sim um gênero com vocação para a demora, a concentração, a elaboração sutil. E é disso que o homem atual precisa mais do que nunca, desde que chegue até ele na forma como sempre chegou, corajosa e bela, assumidamente expressiva, e não sussurrando como se pouco tivesse a dizer sobre a vasta realidade.
Mas é muito pouco, em qualidade e quantidade. Se você pensar que há cem anos o cenário era disputado por gente como Picasso, Matisse, Kandinsky, Mondrian, Klimt, Kokoschka, Klee, Munch, Bonnard e tantos, tantos mais... É claro que da literatura se pode dizer coisa semelhante, citando apenas o quarteto Proust, Joyce, Mann e Kafka. Mas onde estão o Philip Roth, o Ian McEwan, o Coetzee e o Vargas Llosa da pintura atual? Ou, para voltar ao Brasil, quem faz na pintura o que Milton Hatoum faz no romance e Fabrício Carpinejar na poesia? Os nomes que citei não têm seu frescor, sua densidade, sua ligação peculiar com uma tradição (Hatoum com Machado e Euclides; Carpinejar com Drummond e Cabral). Cadê os filhos ou netos de Volpi, Segall, Tarsila, Goeldi, Guignard?
Além disso, o que poderíamos batizar de Sistema Internacional das Artes Plásticas (SIAP) – o conjunto de professores, curadores e artistas formados em universidades que, ingênua ou mafiosamente, ditam as regras globais do que é contemporâneo e do que não é – só dá destaque para os autores de instalações, especialmente vídeo-instalações, para não falar dos happenings como os de Christo; é um domínio da arte conceitual que, embora iniciado com Duchamp e multiplicado nos anos 60 com Beuys, impera desde o final dos anos 80, logo depois de os últimos movimentos pela volta da pintura – como a Transvanguarda italiana ou a Geração 80 brasileira – terem dado seu suspiro. Quando entramos no território de duas dimensões, as bienais organizadas pelo SIAP dedicam muito mais espaço à fotografia. As pinturas, enfim, já não ocupam o mainstream. Regina Silveira, Amélia Toledo, Tunga, Nuno Ramos – nossos artistas mais importantes perdem muito pouco tempo com a pintura.
Os pintores têm sua culpa, claro. A maioria das telas que vejo nas bienais mundo afora, como na última de São Paulo, são tímidas, discretas demais, preocupadas em texturas que significam camadas de memória, passagens do tempo (o tema mais freqüente), presas a poéticas de sugestão que terminam vagas demais para se fixar em nossa memória visual. Exemplos: Marco Giannotti, Sergio Fingermann, Paulo Monteiro. Ou então temos os seguidores da arte concretista ou construtivista, que dizem não tratar de nada além do que de “arranjos de cores e formas”, num grau de representação zero. Exemplos: Cássio Michalany, Eduardo Sued, Carlito Carvalhosa. Mesmo Paulo Pasta tem ido a um extremo de “depuração” do qual sua estética em breve não terá como sair a não ser pela ruptura.
Não que a pintura tenha de ser figurativa, no sentido tradicional do termo; mas pense em grandes abstracionistas como o citado Mondrian ou Pollock, cujas linguagens foram gradualmente construídas a partir da observação meticulosa da natureza, da paisagem, e dialogam com a realidade urbana, com sua topografia (Mondrian) ou ritmo (Pollock). A música, em especial, é seu campo simbólico, do qual emerge sua personalidade. O autor se afirma na superfície; jamais se esconde.
Para tirar o pintor contemporâneo do seu esconderijo, do seu ensimesmamento, é preciso começar a contestar a ideologia vigente na crítica, segundo a qual o lugar da pintura num mundo midiático é a incomunicabilidade, o silêncio, a sutileza que quase se esvai no vazio. Isso já foi superado nas outras artes; Beckett e o nouveau roman, por exemplo, já passaram, e no cinema a vanguarda já não está com Antonioni e Godard. Mas no mundo das artes visuais o vanguardismo como doença infantil persiste, criando um hiato com o público não-iniciado (embora muitas vezes bem-informado e formado) e pregando uma pintura que, na comparação com a arte conceitual e escandalosa de um Damien Hirst, está mais marginal que nunca. É como se fosse um gênero démodé.
No Brasil, por exemplo, curadores como Nelson Aguilar e Paulo Herkenhoff, responsáveis por bienais e outras exposições com forte discurso sobre a arte brasileira como relevante para a cena internacional (muito mais relevante do que ela realmente foi e é), dizem que as instalações têm um poder de seduzir o espectador desde o aspecto sensorial até o intelectual. Logo, a pintura não teria esse mesmo poder, pelo simples fato de não ser tridimensional e não “exigir a participação física do público”, ou seja, não se prestar ao playground ideológico que costumam ser esses grandes eventos, essa ONU que o SIAP monta periodicamente.
Não espanta, assim, que a crítica brasileira considere que a melhor fase de Iberê Camargo, como os scribblings de Twombly, é a dos carretéis, em sintaxe expressionista abstrata; jamais dão a importância devida à sua última fase, dos seus últimos dez anos (1984-94), em que houve um “retorno à figura” – ou seja, o gesto considerado de supremo conservadorismo pelo SIAP. Ou que prefira Pollock a De Kooning. Ou Basquiat a Lucian Freud. Ou que ignore o trabalho de Bonfanti, que mistura a influência de Iberê e Flávio de Carvalho com a de Auerbach e Francis Bacon. Ou que simplesmente não reconheça que Di e Portinari eram grandes desenhistas. E não espanta que grandes nomes brasileiros da visualidade sejam hoje fotógrafos como Miguel Rio Branco, que por sinal vem prometendo retomar mais e mais a pintura.
Mas, ah, que saudades da grande pintura. E que sei que não só eu sinto, mas toda a multidão que vai a retrospectivas de – ou lê livros sobre – Rembrandt, Velásquez, Goya, Manet, Cézanne, Van Gogh, Balthus, Hopper, para não falar de renascentistas e não repetir modernistas. A pintura é um congelamento quente de uma imagem, a superfície que retém e conduz os olhos para um imaginário distinto, pessoal, ao mesmo tempo tão nosso que nos vemos ali. Em tempos de bombardeio audiovisual por TV e cinema, que mesmo na cena mais pictórica parece ter pressa de desviar o olhar para a cena seguinte, a pintura é sim um gênero com vocação para a demora, a concentração, a elaboração sutil. E é disso que o homem atual precisa mais do que nunca, desde que chegue até ele na forma como sempre chegou, corajosa e bela, assumidamente expressiva, e não sussurrando como se pouco tivesse a dizer sobre a vasta realidade.
Friday, August 13, 2010
Saturday, July 17, 2010
ISSO É ARTE? JARDEL CAVALCANTI
“Pós-tudo, ex-tudo, nada”
Augusto de Campos
Augusto de Campos
Uma artista inglesa expôs e vendeu a uma galeria, por 350 mil dólares, a cama onde ela passou a noite trepando e onde havia várias camisinhas usadas. Isso é arte?
O artista belga Win Delvoye enviou para a Bienal de Veneza uma lata contendo seu cocô. A obra foi denominada “Merda do artista”. No ano seguinte, ele industrializou o processo, criando, com um projeto de 200 mil dólares, uma engenhoca que fabrica merda, vendendo cada latinha dessa merda por 1.000 dólares. Em 2002 uma dessas latinhas foi comprada pela Tate Galery por quase um milhão de libras. Isso é cocô, quer dizer, isso é arte?
Vito Aconti, ex-marido de Marina Abramovic montou numa galeria uma instalação chamada Seedbed, que consistia em que ele ficasse sobre um estrado se masturbando durante oito horas por dia, durante duas semanas, dizendo em voz alta todas as fantasias que os assistentes lhe despertavam. Arte?
Haggens descobriu um método de plastificar os cadáveres e realizou algumas exposições com esses seres mortos que passaram por esse processo (pós-moderno) de mumificação. Aí havia gente com o ventre aberto, fetos, animais pela metade, enfim, aquilo que se chama de “museu de horrores”.
Na Feira Internacional de Arte Contemporânea, em Paris, em 1975, a performance de Herman Nitsch, patrocinada pela galeria Rodolf Stadler, consistia numa série de missas negras. Resultado: no dia seguinte ainda havia 2 cm de sangue sobre os 250 metros da galeria.
Marina Abramovic, em 1972, apresentou a obra Ritmo 0, que consistiu em ficar parada junto a uma mesa sobre a qual havia alguns objetos: uma arma, um machado, mel, tinta, perfume, baton, azeite, etc. Ela ficava ali exposta e à disposição dos expectadores que tinham num cartaz orientação de como atuar naquela obra de arte: “há 72 objetos sobre a mesa que podem ser usados em mim conforme desejado. Eu sou o objeto”. Como noticiou a imprensa, “seis horas depois suas roupas haviam sido rasgadas e a arma tinha sido apontada para sua cabeça”. Assim ela apenas radicalizou outra performance quando, certa feita, passou 12 dias na Sean Kelly Galery totalmente exposta à curiosidade do público enquanto passantes, bêbados, operários curiosos viam todas as suas intimidades.
Esses são apenas alguns dos exemplos das dezenas de obras de “arte contemporânea” que têm seu estatuto de valor estético questionado por Affonso Romano de Sant'Anna no seu ousado livro Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão (editora Vieira & Lent, 2003). A partir da grande receptividade de um artigo publicado no jornal O Globo, no ano de 2001, denominado “Arte – um equívoco alarmante”, Sant'Anna acabou escrevendo mais 50 artigos. Eles são saborosos de se ler, instigantes na suas argumentações e ousados em suas proposições sobre os rumos da arte atual.
O livro dá o diagnóstico: a arte meteu-se num grande imbróglio. Os culpados: Duchamp e uma legião de curadores, leiloeiros, marchands e galeristas que decidem o que é arte e o que tem valor enquanto tal. Pouco resta aos críticos, ensaístas e historiadores da arte, condenados ao silêncio e ao temor da contestação à ordem artística vigente.
E ao artista resta alguma decisão? Quantos artistas não estão traumatizados, paralisados, congelados de medo diante do desejo de pintar figuras, como se os talibãs os fossem pegar em flagrante?, questiona Sant'Anna.
Mas, diz o autor, é preciso começar a contestar os próprios contestadores que, de um momento para outro, se petrificaram, se academizaram, se midiatizaram. Segundo seu diagnóstico, Duchamp deu um xeque-mate na arte há quase 100 anos e, desde então, ela ficou paralisada, prisioneira de sua própria revolução. E é Duchamp, pai da arte conceitual, e seus correligionários, os alvos principais dos ataques de Sant'Anna.
Afinal, não foi o próprio abusado Duchamp que dizia que seus seguidores haviam se tornaram vítimas de sua própria artimanha? “Joguei o urinol na cara deles como desafio e agora eles o admiram como um objeto de arte por sua beleza estética”.
“Embora o urinol tivesse desaparecido daquela exposição em Nova York, para onde Duchamp o enviou, ele começou a produzir cópias de seu urinol, a assiná-las para diversos museus para inseri-las no sistema artístico que condenara. Só em 1964 autenticou oito outras peças semelhantes, caindo na repetição que tantas vezes condenou. O anti-artista virou artista, a anti-arte, arte. O feitiço virou contra o feiticeiro. O contestador sucumbiu à cultura do mercado. E, no final da década de 90, a Tate Gallery de Londres comprou uma das cópias por quase um milhão de libras”, diz Sant ´Anna.
Pensar Duchamp através de suas próprias problematizações é desconstruir o desconstrutor. O livro se encarrega dessa tarefa blasfema com muita propriedade.
O urinol nos revelou que todos podemos ser artistas, basta termos a atitude de escolher um objeto qualquer e denominá-lo arte. O trabalho braçal teve dessa forma seus dias contados (técnica para quê?). O que interessa é a receita, não o bolo. Interessa o conceito, não o fazer. Dessa forma tudo pode ser arte... se assim o quisermos.
Se tudo é arte, nada é arte. Se uma gosma espermática ou um bule velho de café podem ser arte, qualquer leigo, sem o mínimo talento para a arte, poderia se perguntar: por que não eu também? Calma lá, tudo bem que democratizamos o “talento”, mas nem todos podem ser chamados de “artista”. Apenas os que o sistema artístico, composto por leiloeiros, curadores, galeristas e divulgadores (não críticos de arte), amparados numa estratégia de marketing que renderá alguns bons dólares, decidir chamar de artista será artista. Estes produzirão o que veremos nas Bienais distribuídas pelo mundo afora.
Interrogações: quem nunca sentiu uma enorme insatisfação, um tremendo vazio, diante de uma coleção de obras “contemporâneas” expostas nas mais famosas galerias e bienais de arte do mundo? Quem nunca sentiu que ali não havia grande coisa para se apreciar ou que desse o que pensar? Quem é que após estar diante da presença arrebatadora da pintura de um Edward Munch, de um Francis Bacon (participantes anos atrás da Bienal de São Paulo na seção “histórica”), quem é que num momento desse não percorreu a Bienal com tremendo desgosto pelo que era ali exposto como o melhor da criação “contemporânea” (arte é contemporânea? Goya e Rembrandt são apenas o passado, ou o presente e o futuro também?). Não seria, pensamos, uma covardia expor esses gigantes diante das míseras expressões artísticas contemporâneas? Aliás, a curadora da próxima Bienal de São Paulo já se encarregou de desfazer essa humilhação, retirando o “núcleo histórico” da próxima exposição.
Segundo Sant'Anna “a melhor homenagem que podemos fazer aos mestres contestadores de ontem é contestá-los hoje. Não para que a arte volte ao passado, mas para que ela se possibilite um futuro”.
Por isso, “é preciso estar maduro para o passado”, vaticina Sant'Anna. Se não... que futuro teremos?
Para ir além
A CEGUEIRA E O SABER - AFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
A conhecida lenda de Hans Christian Andersen "A nova roupa do imperador" é uma variante do tópico que estamos estudando. Aqui não se trata da cegueira biológica, senão da incapacidade de ver e do medo de enfrentar o real. O conto de quatro páginas e meia tem tal força simbólica que incorporou-se ao inconsciente coletivo da modernidade. Por isto, essa história é dada como pertencente a vários folclores, como o português, onde o menino que denuncia a nudez do rei é substituído por um estranho-estrangeiro-negro. Seja como for, quando as pessoas dizem "o rei está nu" estão denunciando o embuste em várias situações. Em relação à arte de nosso tempo essa metáfora é a mais usual. Não há estudo sobre a arte atual que não recorra a essa lenda. Por quê? Seria assunto para uma instrutiva pesquisa.
Diz a história de Andersen (1805-1875) que houve um imperador que gostava tanto de roupas novas que passava mais tempo experimentando-as do que cuidando das outras coisas do reino. (Já na abertura aparece este tópico curioso, que podemos batizar de neofilia: a paixão pela coisa nova, pela moda, pelo aspecto superficial, exterior, que fazia com que o imperador se desinteressasse da realidade de seu reino). Isto propiciou que dois espertalhões surgissem em suas terras dizendo que produziam uma roupa que não apenas tinha cores deslumbrantes, mas que possuía uma qualidade única: só pessoas muito especiais poderiam vê-la e que apenas pessoas destituídas de inteligência, que não estavam aptas para ocupar cargos no reino, iam dizer que a roupa era invisível ou que não existia.
Assim, estabeleceu-se um processo de seleção, quase um rito de iniciação pelo qual o imperador poderia testar a inteligência de seus auxiliares, pois só os escolhidos eram capazes de ver a roupa invisível que ninguém via. Os falsos tecelões simulavam tecer panos no tear e iam exigindo dinheiro e fios de ouro em troca. E como o monarca quisesse já testar a inteligência de seus auxiliares, pediu ao velho ministro que fosse ver como andavam as coisas. Lá chegando, o principal auxiliar do imperador ficou perplexo, porque os teares estavam vazios. "Não consigo ver nada!". Mas, temeroso de expressar seu sentimento, começou a ouvir a descrição que os falsos costureiros faziam do tecido maravilhoso. E ele se dizia: "Será que sou tão estúpido? Não vejo nada! Vai ver que sou inapto para o cargo que ocupo". E como temesse perder o cargo e os tecelões do nada cobrassem dele a visão que eles tinham, acabou declarando: "É maravilhoso! Que padrões! Que cores! Vou dizer ao imperador que fiquei encantado". Além da trapaça financeira, observe-se que a palavra ocupa o lugar da coisa, o conceito no lugar da obra. Não só o imperador acreditou, desde o princípio, na palavra dos arrivistas, como também o ministro, por medo e insegurança, abriu mão da sua palavra (ou visão) em benefício da palavra (ou visão) dos ilusionistas. E a cena se repete quando o imperador, para testar outro conselheiro, pede que ele faça a visita ao ateliê do nada. A reação foi a mesma. Ele não via nada. Pensou em dizer que não estava vendo nada, mas receoso de passar por estúpido e perder o emprego, partiu para os elogios a inventar verbalmente o inexistente tecido. E o mesmo vai ocorrer com o imperador quando decide ir ver a tal roupa fabulosa. Ao defrontar-se com coisa nenhuma, pensou igual ao velho ministro e ao conselheiro - "Estão me fazendo de idiota!" - mas para não passar publicamente por imbecil, já que dois de seus principais auxiliares viam no vazio coisas fascinantes, passou a exclamar "lindo, maravilhoso, excelente". Assim fechou-se o circuito de invenção verbal da coisa inexistente. Ao qual se incorporou o resto da corte quando auxiliares tiveram que fingir carregar o manto invisível no dia de sua exibição no palácio. A ousadia dos falsários leva o imperador admirar-se diante do espelho. Então, consuma-se a alucinação: "o imperador diante do espelho admirava a roupa que não via". Assim, toda a corte passou a se curvar diante do inexistente com a anuência do imperador e seus auxiliares. "Nenhum deles queria admitir que não estava vendo nada, pois se alguém o fizesse estaria admitindo que era estúpido ou incompetente. Nunca uma roupa do imperador fez tanto sucesso".
E como termina a história? No folclore português, ao invés de auxiliares competentes da versão de Andersen, só os "filhos legítimos" poderiam ver a roupa invisível do rei. Seria, como em outros mitos, a senha da legitimidade para sucessão no trono. Desta feita quem denuncia o embuste é um estranho-estrangeiro-negro. Na lenda de Andersen é uma criança - essa espécie de olhar estranho e virgem - que, descompromissada, grita em meio à multidão: "Ele está sem roupa!". O povo começa a abrir os olhos e concordar com a visão do garoto. Enquanto a multidão gritava, o imperador acuado pensava: "Tenho que levar isto até o fim do desfile. E continuou a andar orgulhoso e, com ele, dois cavaleiros e o camareiro real seguiram e entraram numa carruagem que também não existia". É um belo final irônico, em aberto.
Noutras versões menos instigantes, que até circulam na internet, o rei ficou envergonhado de ter se deixado levar pela vaidade, arrependeu-se e desculpou-se, enquanto os falsos tecelões foram enganar outros em outros reinos, até serem presos e condenados.
Essa é uma lenda sobre um pacto de não-ver, onde toda uma comunidade brinca de avestruz enquanto alguém lucra com a cegueira estimulada. E porque todos têm medo da opinião (ou visão) do outro, todos deixam de ver (e ter opinião). É um caso de cegueira social. Isto ocorre, visivelmente, nas agremiações políticas e religiosas: a produção de um discurso que ordena o que deve ser visto ou não. No caso de grande parte da arte contemporânea isto é um caso de voluntária cegueira artística, próximo do que La Boetie chamava "servidão voluntária". Pode-se perguntar: mas afinal, já que tanta gente é capaz de descrever as sutilezas da inexistente veste real, o rei está ou não está nu? Está e não está. Como diria Nathalie Heinich, "o rei está vestido pelo olho do outro". A linguagem pode ocultar ou desvelar. E esse é um jogo difícil e perigoso de se jogar.
FERREIRA GULLAR ENTERRA ARTE CONTEMPORÂNEA
FOLHA DE S.PAULO
18/04/1993
GULLAR ENTERRA ARTE CONTEMPORÂNEA
Daniel Piza
18/04/1993
GULLAR ENTERRA ARTE CONTEMPORÂNEA
Daniel Piza
O poeta e crítico lança 'Argumentação contra a Morte da Arte', e diz que o 'novo' ficou velho
O poeta Ferreira Gullar decidiu lançar uma bomba arrasa-quarteirão na arte contemporânea. Para ele, a morte da arte é como a morte da morte: não pode ocorrer. Mas que as insanidades que tomaram conta das galerias e bienais se esmeram em dar cabo dela, é fato - um fato que Gullar não agüenta mais. Os artigos que compõem "Argumentação contra a morte da arte" foram escritos com pena da galhofa e à tinta da ira; reunidos, podem enfim reinaugurar a discussão de valores como "inovação" e premissas como a de Duchamp: "A função da arte é chocar".
Não pense que Gullar é uma voz clamando no deserto; o problema é que seus opositores possuem megafones, buzinas e muito mais a lucrar com o que supostamente "analisam". Intelectuais brilhantes com George Steiner (o maior entre os vivos) John Updike, Giulio Carlo Argan e Clement Greenberg estão com Gullar. São poucos, mas poucos e bons - tal qual os ingleses na Batalha de Agiconurt.
Na entrevista abaixo, concedida por telefone de sua casa no Rio (onde preside o IBAC, ex-Funarte), Gullar dá uma pequena amostra do que diz seu livro. Bom lembrar: ele é crítico de arte há mais de 30 anos. Entre outras curiosidades, é um dos fundadores do movimento neoconcreto, que está entre as pedras-de-toque da "antiarte". Portanto, que não se espere de "Argumentação contra a morte da arte" um libelo antimodernista como "Paranóia ou Mistificação" texto de Monteiro Lobato de 1917 que fala pelo homem médio de hoje. Gullar sabe onde pisa. E de lá não saem odores agradáveis.
***
Folha - O sr. não acha que se o livro tivesse sido escrito uma vez, em vez de ser coletânea de artigos em jornal, o impacto seria maior?
Ferreira Gullar - Talvez. Eu tinha a idéia de publicar um livro sobre esse problema da arte contemporânea, e ainda pretendo fazer isso, quando tiver tempo. Tudo começou quando publiquei uma conferência minha sobre o tema, e depois fui dando continuidade, aquilo foi se desenvolvendo. O trabalho ganhou um todo.
Folha - O ponto de partida de sua "Argumentação contra a morte da arte" é a rejeição da idéia de que a arte evolui. Mas não existe de fato um aprimoramento técnico em certas linhagens?
Gullar - O que critico é essa supervalorização da idéia de evolução, que é o princípio da vanguarda. Quer dizer, valores estéticos não contam; só conta a novidade. Acontece que a idéia de vanguarda acabou. Esse princípio da inovação conduziu a um impasse e este aos absurdos que estão aí. Então a arte acabou!? Não há nada de novo para fazer. Claro, falo do novo pelo novo que é uma coisa autofágica. O novo é inerente à grande arte; nenhum poeta digno quer fazer o que já foi feito. Ele tem uma proposta, não quer dizer o que está dito.
Folha - Mas quais seriam esses "valores" estéticos?
Gullar - Permanência. É isso que é arte: a busca de fundar o permanente. Chegou-se, nas últimas décadas, ao cúmulo de criar a "arte do efêmero" do "perecível", o que é uma contradição em termos. O artista busca o permanente para assim motivar a realidade. Vou dar um exemplo. O Ibac está doando obras para o acervo do Museu Nacional de Belas Artes em breve. Outro dia encontramos lá uma coisa, que é um pedaço de ferrolho que era emendado com um pedaço de borracha. Não sei quem é o autor. Que vou fazer? Cadê o pedaço de borracha, como era a emenda? Esses caras negam a permanência da obra de arte, mas eles acreditam na "sublimidade" da arte, em que não acredito absolutamente. É só botar o ferrolho lá, que vem outro cara e escreve uma lauda complicadíssima. Transformamos o mundo de duas maneiras: ou poeticamente ou simbolicamente. Essa gente destrói a linguagem visual, mas consagram a verbal. Que revolução há nisso?
Folha - O público não gosta da arte contemporânea. O problema está nele, que não gosta da arte que exige esforço e conhecimento, ou isso é genuíno?
Gullar - Esse público se divide em dois. Existe o cara de cabeça acadêmica, que ainda não entendeu Picasso, e tenta nos imputar seu preconceito. E existe o outro lado: o cara que chegou a Picasso, Matisse, mas não é um estudioso de arte, não é um teórico, e portanto não entende nada.
Folha - Por que o sr. acha que as artes plástica, especificamente, descambara em tanta fajutice?
Gullar - Não sei. É uma boa pergunta, sempre me indago isso. Em todos os outros campos da atividade artística o vanguardóide foi superado. Quando a coisa ameaça a própria natureza da expressão, há a percepção disso. todos reconhecem a arte, o gênio de "Finnegans Wake", de Joyce, mas ninguém vai tomar aquilo como exemplo, como modelo. Por que na pintura não se deu isso? Realmente não sei. Presumo que há um problema institucional. Bienais, centros culturais, os especialista, eles não se lixam para o público. Formam uma gangue, uma seita, que pouco se lixa para a sociedade. E o Estado paga isso; não entendo.
Folha - O que o sr. pensa "dois" gurus: um da geração anterior, Hélio Oiticica, outros desta, Cildo Meireles?
Gullar - Acho que exageram a importância de Hélio Oiticica. Ele foi vítima de um radicalismo; não é por acaso que se entregou às drogas no fim da vida. Lygia Clark foi mais importante, apesar de todo o talento do meu amigo Hélio. Os "Parangolés" só existem como teoria. Eu fui um desses teóricos, até que um dia senti um vazio debaixo dos pés. Cildo Meireles também tem talento. Vi uma instalação dele no começo da carreira que era bem interessante, criava uma atmosfera forte, tinha subjetividade. Mas das últimas coisas não gosto, não. Esse cerebralismo duchampiano teve sentido em determinada época, mas subsiste como arte.
COLETÂNEA VAI DEIXAR FERIDOS E CHAMUSCADOS
Da Redação
"Argumentação contra a Morte da Arte" não tem o poder de fogo que poderia ter. O motivo mais imediato é porque, como coletânea, não centra forças num esquadrinhamento de toda a teoria que baliza (e satura) as "grotesqueries" contemporâneas. Há buracos argumentativos na coletânea; mas, pelo menos, não serão poucos os feridos e chamuscados. O livro tem munição para uma guerra digna de Tolstoi.
Muitos concordarão com Gullar em linhas gerais, mas entre esses não estão os que licenciam a arte contemporânea - que por sua vez os licencia, como a cobra que morde o próprio rabo... e engasga. Em uma coisa Gullar está certíssimo: o estado atual da linguagem visual é uma consagração do sofisma verbal; e, acrescentese, não há nada mais antimodernista que isso. Há algo errado numa arte que é mais e mais uma apoteose do kitsch. O que explica isso é que é difícil de entender.
Só se sabe que é fácil, ah como é fácil, fazer uma instalação e, com dois ou três segundos de observação (o olho assimila informações mais rápido do que se pensa), sentar e escrever uma "Britannica" em cima dela - assim como em cima de um toldo de padaria, ou de um buraco de agulha. A diferença é que a instalação está numa galeria ou museu. Mais uma vez, nada mais antimodernista - porque o moderno sempre se voltou contra a sacralização da arte em museus e galerias.
É a "síndrome Finnegans Wake". Pode-se ler o livro de Joyce durante anos e anos, e há inclusive toda uma indústria acadêmica a serviço desse leitor. Não era o Joyce queria: ele queria fazer um livro que fosse como o mundo, com "a assinatura de todas as coisas" que estamos aqui para ler, e de que nunca chegaremos ao conhecimento total, à conclusão definitiva. Mas "Finnegans" pode dar muito prazer aos menos obcecados, porque é da essência da linguagem verbal ser simbólica. A essência da linguagem visual não é a mesma; uma pintura não dispensa conceitos, mas também não sobrevive deles. Fala direto à percepção, que é, biologicamente, uma relação entre a sensibilidade (sistema límbico) e o intelecto (córtex). Não dá para "negar" o sistema límbico; não dá para negar a reação química que uma imagem aciona assim que chega à retina. Disso se conclui, por exemplo, que, como o olho possui estrutura harmônica, não é à toa que temos um "senso" harmônico - um gosto pela harmonia, ora bolas.
Sim, entre senso harmônico e senso estético vai um sem-número de variáveis. É justamente isso que tem de ser redescutido, longe das metafísicas. O livro de Gullar peca aí: fala muito em "subjetividade" e "espiritualidade" da arte. E exagera no conservadorismo, como no desprezo a Mondrian; sem o Mondrian de "Boogie-Woogie" não haveria Richard Diebenkorn, por exemplo. Mondrian não trouxa a morte da arte; apontou também para novas revoluções. Muitas delas, alias, ainda restam como potencialidades. A morte da arte só existe para o falso artista. Está na hora de acabar com esse derrotismo. (D. P.)
Sunday, March 12, 2006
TÉCNICA PRA QUÊ?
27.07.2005 - Carta Capital - P. 50-53 - Ana Paula Sousa –Técnica para quê?
Dominado por obras conceituais, o mercado nacional deixa para trás os pincéis e cola-se à “última tendência”, seja ela qual for.
Ana Paula Sousa
Em um jantar para alguns intelectuais de São Paulo, oferecido logo após o encerramento da última Bienal de Veneza, em junho, um amante das artes plásticas aproveitou a presença de uma crítica à mesa para satisfazer a curiosidade. “Como foi a exposição do Lucian Freud?”, perguntou, referindo-se à mostra dedicada àquele que é considerado o último grande pintor vivo. Taça de vinho na mão, a crítica não hesitou: “Ora, eu não vi. Vou perder meu tempo vendo pintura?”
O episódio, de tom anedótico, mas conteúdo real, deixou perplexo o admirador de Freud, artista inglês nascido em 1922, neto de Sigmund Freud. Mas, no circuito em voga no País, despropositada não é a resposta que ouviu, e sim a pergunta que fez. Dominado pela arte conceitual, o mercado brasileiro passou a considerar passadista toda a criação dependente de pincel, tela e domínio técnico.
“Técnica? Isso não é mais nada, minha filha. Tem artista com obras que você própria pode executar”, ensina Luisa Strina, uma das mais bem-sucedidas marchands do País. “O que precisa é ter conceito”, remata, com o dedo indicador a tocar levemente na têmpora direita. “As nossas instalações fazem o maior sucesso no mundo.”
É “no mundo” que o mercado de arte contemporânea brasileira vai buscar endosso para os preços que pratica e para os artistas que promove. Se Beatriz Milhazes (nascida em 1960) foi comprada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) por US$ 90 mil, quem ousa contestar seu valor? Se o escultor Tunga (1952) é selecionado para a Documenta de Kassel, na Alemanha, que importa se a maior leiloeira do País, Soraia Cals, nunca vendeu uma obra assinada por ele?
Questão de gosto.
Com os mesmos R$ 150 mil que se compra um quadro de Beatriz Milhazes, adquire-se um Di Cavalcanti (a obra Menina de Guaratinguetá, especificamente, como exemplo).
“Seja a obra boa, seja ruim, o que a coloca em evidência é o marketing. E dizer que o MoMA comprou é um marketing infalível. No Brasil, a empáfia cola”, crava o crítico Olívio Tavares de Araújo. A primeira coisa a ser lembrada nessa discussão, observa Araújo, é que houve um deslocamento de poder decisório do campo intelectual para o campo mercadológico.
“Temos um mercado que, de maneira mais ou menos velada, controla as instituições, como os museus, e o pensamento. Os galeristas tornaram-se competentes negociantes”, resume. Para compreender a asserção, nada como tornar à galeria de Luisa Strina, localizada na rua Oscar Freire, nos Jardins, em São Paulo.
Olhos pregados na tela do computador, Luisa, depois de explicar que “arte é conceito”, deleitou-se com a consciência da sua mente avançada. “O brasileiro ainda é muito conservador. Tem 10 ou 15 artistas contemporâneos que estão em museus do mundo todo. Mas quem aqui conhece Cildo Meirelles? Quem conhece o Leonilson, que é o artista brasileiro com maior número de obras em museus internacionais? Sabe, quem desfaz disso é limitado, convencional.”
Os clientes da galeria, assinala Luisa, são as pessoas de mente aberta. “É gente que sabe que o Marepe vai expor no Pompidou, em Paris. Que modernista expôs sozinho no Pompidou?”, indaga, comparando o jovem baiano Marepe (1970), que faz arte a partir de objetos, com Portinari (1903-1962) ou Di Cavalcanti (1897-1976) “Meus clientes são pessoas jovens. Já tive até um cliente de 12 anos que veio aqui comprar”, – a caixa-d’água assinada por Alexandre da Cunha, talvez.
Ao lado de Luisa Strina, na linha de frente da arte intelectual – que sente calafrios diante de qualquer manifestação figurativa –, está a galeria Fortes Villaça. Feito agência de publicidade, a casa tem até um “diretor criativo”. Ele se chama Alexandre Gabriel, tem 29 anos e começou a carreira como assessor de imprensa. “Me conta a sua matéria”, começou, não sem um toque de cortesia. E a seguir explicou sua função. “Cuido da criação da imagem do artista, ajudo a criar produtos, como livros e catálogos, e agora as meninas (Márcia Fortes e Alessandra Villaça, as sócias) querem que eu atenda a imprensa também.”
Um prato vazio? Não. É Pequeno Almoço, obra de Adriana Varejão.
Gabriel cumpre de modo participativo o papel. “A primeira coisa que eu acho que você tem de mostrar para o público da sua revista é que existe uma diferença entre arte e decoração.” A Fortes Villaça, que tem no portfólio estrelas como Beatriz Milhazes, Adriana Varejão (1964) e Vik Muniz (1961), trabalha com arte. Por saber disso, a repórter de CartaCapital, ao ver sobre a mesa um par de sandálias havaianas bem grandes, compostas de pequenos quadrados brancos, fez uma pergunta genérica para evitar a gafe de chamar de decoração o que talvez fosse arte. - E essas sandálias? Gabriel foi direto. “US$ 2 mil.” Ao notar certo espanto, emendou: “É uma série dos anos 60, de Los Carpinteros, de Cuba. É uma série supercobiçada. Enfim... uma coisa superimportante que eu queria te dizer é que a gente participa, todos os anos, de cinco feiras internacionais”.
A ponte aérea internacional é outra das pontas a unir todas as galerias de grife. Raquel Arnaud, representante de alguns dos mais caros artistas, como Sergio Camargo (1930-1990) e Mira Schendel (1919-1988), deve ao exterior 40% do faturamento. Ainda assim, freqüenta as feiras com menos gosto que Luisa e Gabriel. “São muito grandes, têm muita mistura de linguagem.” Na França, então, fica de cabelo em pé: “Os franceses ainda estão com a cabeça muito voltada para o impressionismo. Temos um trabalho enorme de explicar, explicar, e, no fim, não compram”.
Apesar dos percalços, ainda é mais fácil que no Brasil. “Brasileiro compra mais picadinho. E ainda tem o vício de parcelar”, queixa-se Raquel. Outra coisa que tira a galerista do sério é a expressão “arte contemporânea brasileira”, que, a seu ver, não passa de rótulo. “Arte contemporânea é arte contemporânea. Por que brasileira? Vamos botar uma bandeira nas obras? Identidade brasileira deixa para o futebol.”
Mas será que o sucesso internacional é mesmo tão grande? Dona de uma galeria que trabalha essencialmente com gravuras e desenhos, Mônica Filgueiras diz que, de fato, alguns artistas brasileiros conseguiram entrar no circuito internacional. Mas pondera: “Quando eles aparecem em leilões da Sotheby’s, em geral, são os próprios brasileiros que os colocam lá. Eles pagam US$ 1,5 mil para ter uma imagem da obra reproduzida no catálogo. É, no fundo, uma estratégia de mercado”.
Os olhos voltados para o exterior são parte de um sistema de autorização recíproca, em que galeristas, museus, artistas e críticos definem o que é arte hoje no Brasil. Fora do “mercado”, numa casa onde as paredes não são brancas como as das galerias e onde pincéis ainda repousam em canecas, o pintor Sergio Fingermann (1953) destrincha esse sistema a partir da formação do artista. “A formação do artista se empobreceu. Ele perde a experiência de ateliê, de construção de linguagem e domínio de expressão e opta por escolas e faculdades. Essas escolas, integrantes do sistema da arte, tutelam a produção e indicam que caminho ele deve seguir.”
Fingermann considera que, cada vez mais, o artista perde o sentido de ofício e, por isso, dilui-se a marca pessoal nas obras. “Valores como a subjetividade estão sumindo, porque a produção busca uma identificação com o que vem de fora. Não por acaso, se parece muito com a ‘última tendência’. É uma produção que tem a ver com a novidade, não com o novo, e que visa, essencialmente, ser aceita”, analisa.
Como professor, Fingermann nota que a nova geração não tem paciência de desenvolver a técnica. “Deixou de haver o tempo de maturação. O jovem saqueia o saber do outro e, na pressa de satisfazer a vontade do circuito, desqualifica as experiências anteriores à dele. Como o mercado não tem critérios, esses ‘saques’ são aceitos como novidades. O pensamento antecede o fazer artístico. O desejo de sucesso antecede o trabalho.”
Quando o conceito é anterior ao fazer artístico, inverte-se o sentido da percepção da obra. Como formulou Heidegger, ao olhar para a Pietà, de Michelangelo, o público vê uma mulher, depois pensa na morte e, ao fim do percurso, é capaz de dizer: “Isso era uma pedra”. Hoje, o percurso é oposto. O público olha para uma pedra – ou para uma lâmpada – e tem de descobrir que “a coisa” é arte. “Duchamp fez isso num determinado momento. Hoje, qual o significado dessas ‘coisas’?”, pergunta Fingermann. “O que a gente quer com a arte é recuperar a experiência de ver e transformar a experiência de ver em conhecimento.”
Isso é o que quer Fingermann. Mas não os jovens consumidores. Vindos principalmente do mercado financeiro, das grandes corporações ou do mundo da publicidade, vários dos novos colecionadores têm na ponta da língua a palavra “revenda” – alguns são, na verdade, antigos operadores da Bolsa que consideram a arte mais rentável que ações. Quem não pensa na valorização futura da obra pensa, principalmente, na harmonia com o sofá da sala.
“Grande parte do mercado é sustentado pela decoração. Tanto é assim que, de vez em quando, o comprador liga para a galeria e pergunta: ‘De quem é mesmo essa gravura?’”, relata a galerista Mônica Filgueiras. Para esse sistema em que todos tateiam no escuro contribuiu também o fim da crítica de artes plásticas na imprensa.
Esse processo, que começou na década de 80 e se solidificou nos anos 90, transformou a cobertura de artes plásticas em mero guia informativo. “Isso aconteceu, em parte, porque a imprensa abriu mão desse papel e, em parte, porque há uma tentativa hegemônica, que é a arte dita de vanguarda, e a verdadeira crítica atrapalharia”, avalia o crítico Jacob Klintowitz.
A reflexão, quando existe, integra o sistema de arte, ou seja, é feita por curadores e, em geral, é ininteligível. “Isso é algo deliberado”, aposta Olívio Tavares de Araújo. “O poder é mantido através da exclusão. Escrever difícil é uma estratégia voluntária de ocupação de espaço.” E o espaço foi mesmo ocupado. Escasseadas as grandes obras dos modernistas – todas nas mãos de colecionadores –, o dinheiro empregado em arte voltou-se para a dita novidade. “Quem tem os bons quadros de Di Cavalcanti, Pancetti, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Segall ou Ismael Nery não quer vender”, observa o marchand Valdemar Szaniecki. Esses artistas ainda têm os mais altos preços do mercado, mas há certas obras de Di Cavalcanti que custam o mesmo que um quadro de Beatriz Milhazes.
“Você compra um Di Cavalcanti da década de 50 por R$ 150 mil. Não podemos nos esquecer de que é o mercado de um país pobre em que não existe a cultura das artes plásticas. Tanto que mesmo um Di por R$ 150 mil pode não ser vendido. Quem diz que o mercado está aquecido é a imprensa, é o promotor do leilão”, afirma Szaniecki.
Os jovens galeristas discordam. Ricardo Trevisan, da Casa Triângulo, que trabalha com artistas de 25 a 50 anos, não reclama dos negócios. “Não dá é para ficar olhando para trás. E tem de ir para o mercado internacional. Se você trabalha com um artista emergente, você cresce com ele.” Na Casa Triângulo, há desde gravuras a R$ 500 até instalações de Sandra Cinto (1968), avaliadas em US$ 30 mil.
De preço em preço, fica claro que a discussão sobre artes plásticas – como de resto sobre várias áreas de cultura – é, sobretudo, uma discussão sobre números. E, como contra a hegemonia quase ninguém está disposto a remar, a caixa-d’água é o Brecheret destes anos 2000. Na lógica do mercado, a capacidade de criar beleza parece não mais contar.
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