Augusto de Campos
Uma artista inglesa expôs e vendeu a uma galeria, por 350 mil dólares, a cama onde ela passou a noite trepando e onde havia várias camisinhas usadas. Isso é arte?
O artista belga Win Delvoye enviou para a Bienal de Veneza uma lata contendo seu cocô. A obra foi denominada “Merda do artista”. No ano seguinte, ele industrializou o processo, criando, com um projeto de 200 mil dólares, uma engenhoca que fabrica merda, vendendo cada latinha dessa merda por 1.000 dólares. Em 2002 uma dessas latinhas foi comprada pela Tate Galery por quase um milhão de libras. Isso é cocô, quer dizer, isso é arte?
Vito Aconti, ex-marido de Marina Abramovic montou numa galeria uma instalação chamada Seedbed, que consistia em que ele ficasse sobre um estrado se masturbando durante oito horas por dia, durante duas semanas, dizendo em voz alta todas as fantasias que os assistentes lhe despertavam. Arte?
Haggens descobriu um método de plastificar os cadáveres e realizou algumas exposições com esses seres mortos que passaram por esse processo (pós-moderno) de mumificação. Aí havia gente com o ventre aberto, fetos, animais pela metade, enfim, aquilo que se chama de “museu de horrores”.
Na Feira Internacional de Arte Contemporânea, em Paris, em 1975, a performance de Herman Nitsch, patrocinada pela galeria Rodolf Stadler, consistia numa série de missas negras. Resultado: no dia seguinte ainda havia 2 cm de sangue sobre os 250 metros da galeria.
Marina Abramovic, em 1972, apresentou a obra Ritmo 0, que consistiu em ficar parada junto a uma mesa sobre a qual havia alguns objetos: uma arma, um machado, mel, tinta, perfume, baton, azeite, etc. Ela ficava ali exposta e à disposição dos expectadores que tinham num cartaz orientação de como atuar naquela obra de arte: “há 72 objetos sobre a mesa que podem ser usados em mim conforme desejado. Eu sou o objeto”. Como noticiou a imprensa, “seis horas depois suas roupas haviam sido rasgadas e a arma tinha sido apontada para sua cabeça”. Assim ela apenas radicalizou outra performance quando, certa feita, passou 12 dias na Sean Kelly Galery totalmente exposta à curiosidade do público enquanto passantes, bêbados, operários curiosos viam todas as suas intimidades.
Esses são apenas alguns dos exemplos das dezenas de obras de “arte contemporânea” que têm seu estatuto de valor estético questionado por Affonso Romano de Sant'Anna no seu ousado livro Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão (editora Vieira & Lent, 2003). A partir da grande receptividade de um artigo publicado no jornal O Globo, no ano de 2001, denominado “Arte – um equívoco alarmante”, Sant'Anna acabou escrevendo mais 50 artigos. Eles são saborosos de se ler, instigantes na suas argumentações e ousados em suas proposições sobre os rumos da arte atual.
O livro dá o diagnóstico: a arte meteu-se num grande imbróglio. Os culpados: Duchamp e uma legião de curadores, leiloeiros, marchands e galeristas que decidem o que é arte e o que tem valor enquanto tal. Pouco resta aos críticos, ensaístas e historiadores da arte, condenados ao silêncio e ao temor da contestação à ordem artística vigente.
E ao artista resta alguma decisão? Quantos artistas não estão traumatizados, paralisados, congelados de medo diante do desejo de pintar figuras, como se os talibãs os fossem pegar em flagrante?, questiona Sant'Anna.
Mas, diz o autor, é preciso começar a contestar os próprios contestadores que, de um momento para outro, se petrificaram, se academizaram, se midiatizaram. Segundo seu diagnóstico, Duchamp deu um xeque-mate na arte há quase 100 anos e, desde então, ela ficou paralisada, prisioneira de sua própria revolução. E é Duchamp, pai da arte conceitual, e seus correligionários, os alvos principais dos ataques de Sant'Anna.
Afinal, não foi o próprio abusado Duchamp que dizia que seus seguidores haviam se tornaram vítimas de sua própria artimanha? “Joguei o urinol na cara deles como desafio e agora eles o admiram como um objeto de arte por sua beleza estética”.
“Embora o urinol tivesse desaparecido daquela exposição em Nova York, para onde Duchamp o enviou, ele começou a produzir cópias de seu urinol, a assiná-las para diversos museus para inseri-las no sistema artístico que condenara. Só em 1964 autenticou oito outras peças semelhantes, caindo na repetição que tantas vezes condenou. O anti-artista virou artista, a anti-arte, arte. O feitiço virou contra o feiticeiro. O contestador sucumbiu à cultura do mercado. E, no final da década de 90, a Tate Gallery de Londres comprou uma das cópias por quase um milhão de libras”, diz Sant ´Anna.
Pensar Duchamp através de suas próprias problematizações é desconstruir o desconstrutor. O livro se encarrega dessa tarefa blasfema com muita propriedade.
O urinol nos revelou que todos podemos ser artistas, basta termos a atitude de escolher um objeto qualquer e denominá-lo arte. O trabalho braçal teve dessa forma seus dias contados (técnica para quê?). O que interessa é a receita, não o bolo. Interessa o conceito, não o fazer. Dessa forma tudo pode ser arte... se assim o quisermos.
Se tudo é arte, nada é arte. Se uma gosma espermática ou um bule velho de café podem ser arte, qualquer leigo, sem o mínimo talento para a arte, poderia se perguntar: por que não eu também? Calma lá, tudo bem que democratizamos o “talento”, mas nem todos podem ser chamados de “artista”. Apenas os que o sistema artístico, composto por leiloeiros, curadores, galeristas e divulgadores (não críticos de arte), amparados numa estratégia de marketing que renderá alguns bons dólares, decidir chamar de artista será artista. Estes produzirão o que veremos nas Bienais distribuídas pelo mundo afora.
Interrogações: quem nunca sentiu uma enorme insatisfação, um tremendo vazio, diante de uma coleção de obras “contemporâneas” expostas nas mais famosas galerias e bienais de arte do mundo? Quem nunca sentiu que ali não havia grande coisa para se apreciar ou que desse o que pensar? Quem é que após estar diante da presença arrebatadora da pintura de um Edward Munch, de um Francis Bacon (participantes anos atrás da Bienal de São Paulo na seção “histórica”), quem é que num momento desse não percorreu a Bienal com tremendo desgosto pelo que era ali exposto como o melhor da criação “contemporânea” (arte é contemporânea? Goya e Rembrandt são apenas o passado, ou o presente e o futuro também?). Não seria, pensamos, uma covardia expor esses gigantes diante das míseras expressões artísticas contemporâneas? Aliás, a curadora da próxima Bienal de São Paulo já se encarregou de desfazer essa humilhação, retirando o “núcleo histórico” da próxima exposição.
Segundo Sant'Anna “a melhor homenagem que podemos fazer aos mestres contestadores de ontem é contestá-los hoje. Não para que a arte volte ao passado, mas para que ela se possibilite um futuro”.
Por isso, “é preciso estar maduro para o passado”, vaticina Sant'Anna. Se não... que futuro teremos?
Para ir além
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