Sunday, March 12, 2006

TÉCNICA PRA QUÊ?

27.07.2005 - Carta Capital - P. 50-53 - Ana Paula Sousa –Técnica para quê?

Dominado por obras conceituais, o mercado nacional deixa para trás os pincéis e cola-se à “última tendência”, seja ela qual for.
Ana Paula Sousa

Em um jantar para alguns intelectuais de São Paulo, oferecido logo após o encerramento da última Bienal de Veneza, em junho, um amante das artes plásticas aproveitou a presença de uma crítica à mesa para satisfazer a curiosidade. “Como foi a exposição do Lucian Freud?”, perguntou, referindo-se à mostra dedicada àquele que é considerado o último grande pintor vivo. Taça de vinho na mão, a crítica não hesitou: “Ora, eu não vi. Vou perder meu tempo vendo pintura?”
O episódio, de tom anedótico, mas conteúdo real, deixou perplexo o admirador de Freud, artista inglês nascido em 1922, neto de Sigmund Freud. Mas, no circuito em voga no País, despropositada não é a resposta que ouviu, e sim a pergunta que fez. Dominado pela arte conceitual, o mercado brasileiro passou a considerar passadista toda a criação dependente de pincel, tela e domínio técnico.
“Técnica? Isso não é mais nada, minha filha. Tem artista com obras que você própria pode executar”, ensina Luisa Strina, uma das mais bem-sucedidas marchands do País. “O que precisa é ter conceito”, remata, com o dedo indicador a tocar levemente na têmpora direita. “As nossas instalações fazem o maior sucesso no mundo.”
É “no mundo” que o mercado de arte contemporânea brasileira vai buscar endosso para os preços que pratica e para os artistas que promove. Se Beatriz Milhazes (nascida em 1960) foi comprada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) por US$ 90 mil, quem ousa contestar seu valor? Se o escultor Tunga (1952) é selecionado para a Documenta de Kassel, na Alemanha, que importa se a maior leiloeira do País, Soraia Cals, nunca vendeu uma obra assinada por ele?

Questão de gosto.
Com os mesmos R$ 150 mil que se compra um quadro de Beatriz Milhazes, adquire-se um Di Cavalcanti (a obra Menina de Guaratinguetá, especificamente, como exemplo).
“Seja a obra boa, seja ruim, o que a coloca em evidência é o marketing. E dizer que o MoMA comprou é um marketing infalível. No Brasil, a empáfia cola”, crava o crítico Olívio Tavares de Araújo. A primeira coisa a ser lembrada nessa discussão, observa Araújo, é que houve um deslocamento de poder decisório do campo intelectual para o campo mercadológico.
“Temos um mercado que, de maneira mais ou menos velada, controla as instituições, como os museus, e o pensamento. Os galeristas tornaram-se competentes negociantes”, resume. Para compreender a asserção, nada como tornar à galeria de Luisa Strina, localizada na rua Oscar Freire, nos Jardins, em São Paulo.
Olhos pregados na tela do computador, Luisa, depois de explicar que “arte é conceito”, deleitou-se com a consciência da sua mente avançada. “O brasileiro ainda é muito conservador. Tem 10 ou 15 artistas contemporâneos que estão em museus do mundo todo. Mas quem aqui conhece Cildo Meirelles? Quem conhece o Leonilson, que é o artista brasileiro com maior número de obras em museus internacionais? Sabe, quem desfaz disso é limitado, convencional.”
Os clientes da galeria, assinala Luisa, são as pessoas de mente aberta. “É gente que sabe que o Marepe vai expor no Pompidou, em Paris. Que modernista expôs sozinho no Pompidou?”, indaga, comparando o jovem baiano Marepe (1970), que faz arte a partir de objetos, com Portinari (1903-1962) ou Di Cavalcanti (1897-1976) “Meus clientes são pessoas jovens. Já tive até um cliente de 12 anos que veio aqui comprar”, – a caixa-d’água assinada por Alexandre da Cunha, talvez.
Ao lado de Luisa Strina, na linha de frente da arte intelectual – que sente calafrios diante de qualquer manifestação figurativa –, está a galeria Fortes Villaça. Feito agência de publicidade, a casa tem até um “diretor criativo”. Ele se chama Alexandre Gabriel, tem 29 anos e começou a carreira como assessor de imprensa. “Me conta a sua matéria”, começou, não sem um toque de cortesia. E a seguir explicou sua função. “Cuido da criação da imagem do artista, ajudo a criar produtos, como livros e catálogos, e agora as meninas (Márcia Fortes e Alessandra Villaça, as sócias) querem que eu atenda a imprensa também.”

Um prato vazio? Não. É Pequeno Almoço, obra de Adriana Varejão.
Gabriel cumpre de modo participativo o papel. “A primeira coisa que eu acho que você tem de mostrar para o público da sua revista é que existe uma diferença entre arte e decoração.” A Fortes Villaça, que tem no portfólio estrelas como Beatriz Milhazes, Adriana Varejão (1964) e Vik Muniz (1961), trabalha com arte. Por saber disso, a repórter de CartaCapital, ao ver sobre a mesa um par de sandálias havaianas bem grandes, compostas de pequenos quadrados brancos, fez uma pergunta genérica para evitar a gafe de chamar de decoração o que talvez fosse arte. - E essas sandálias? Gabriel foi direto. “US$ 2 mil.” Ao notar certo espanto, emendou: “É uma série dos anos 60, de Los Carpinteros, de Cuba. É uma série supercobiçada. Enfim... uma coisa superimportante que eu queria te dizer é que a gente participa, todos os anos, de cinco feiras internacionais”.
A ponte aérea internacional é outra das pontas a unir todas as galerias de grife. Raquel Arnaud, representante de alguns dos mais caros artistas, como Sergio Camargo (1930-1990) e Mira Schendel (1919-1988), deve ao exterior 40% do faturamento. Ainda assim, freqüenta as feiras com menos gosto que Luisa e Gabriel. “São muito grandes, têm muita mistura de linguagem.” Na França, então, fica de cabelo em pé: “Os franceses ainda estão com a cabeça muito voltada para o impressionismo. Temos um trabalho enorme de explicar, explicar, e, no fim, não compram”.
Apesar dos percalços, ainda é mais fácil que no Brasil. “Brasileiro compra mais picadinho. E ainda tem o vício de parcelar”, queixa-se Raquel. Outra coisa que tira a galerista do sério é a expressão “arte contemporânea brasileira”, que, a seu ver, não passa de rótulo. “Arte contemporânea é arte contemporânea. Por que brasileira? Vamos botar uma bandeira nas obras? Identidade brasileira deixa para o futebol.”
Mas será que o sucesso internacional é mesmo tão grande? Dona de uma galeria que trabalha essencialmente com gravuras e desenhos, Mônica Filgueiras diz que, de fato, alguns artistas brasileiros conseguiram entrar no circuito internacional. Mas pondera: “Quando eles aparecem em leilões da Sotheby’s, em geral, são os próprios brasileiros que os colocam lá. Eles pagam US$ 1,5 mil para ter uma imagem da obra reproduzida no catálogo. É, no fundo, uma estratégia de mercado”.
Os olhos voltados para o exterior são parte de um sistema de autorização recíproca, em que galeristas, museus, artistas e críticos definem o que é arte hoje no Brasil. Fora do “mercado”, numa casa onde as paredes não são brancas como as das galerias e onde pincéis ainda repousam em canecas, o pintor Sergio Fingermann (1953) destrincha esse sistema a partir da formação do artista. “A formação do artista se empobreceu. Ele perde a experiência de ateliê, de construção de linguagem e domínio de expressão e opta por escolas e faculdades. Essas escolas, integrantes do sistema da arte, tutelam a produção e indicam que caminho ele deve seguir.”
Fingermann considera que, cada vez mais, o artista perde o sentido de ofício e, por isso, dilui-se a marca pessoal nas obras. “Valores como a subjetividade estão sumindo, porque a produção busca uma identificação com o que vem de fora. Não por acaso, se parece muito com a ‘última tendência’. É uma produção que tem a ver com a novidade, não com o novo, e que visa, essencialmente, ser aceita”, analisa.
Como professor, Fingermann nota que a nova geração não tem paciência de desenvolver a técnica. “Deixou de haver o tempo de maturação. O jovem saqueia o saber do outro e, na pressa de satisfazer a vontade do circuito, desqualifica as experiências anteriores à dele. Como o mercado não tem critérios, esses ‘saques’ são aceitos como novidades. O pensamento antecede o fazer artístico. O desejo de sucesso antecede o trabalho.”
Quando o conceito é anterior ao fazer artístico, inverte-se o sentido da percepção da obra. Como formulou Heidegger, ao olhar para a Pietà, de Michelangelo, o público vê uma mulher, depois pensa na morte e, ao fim do percurso, é capaz de dizer: “Isso era uma pedra”. Hoje, o percurso é oposto. O público olha para uma pedra – ou para uma lâmpada – e tem de descobrir que “a coisa” é arte. “Duchamp fez isso num determinado momento. Hoje, qual o significado dessas ‘coisas’?”, pergunta Fingermann. “O que a gente quer com a arte é recuperar a experiência de ver e transformar a experiência de ver em conhecimento.”
Isso é o que quer Fingermann. Mas não os jovens consumidores. Vindos principalmente do mercado financeiro, das grandes corporações ou do mundo da publicidade, vários dos novos colecionadores têm na ponta da língua a palavra “revenda” – alguns são, na verdade, antigos operadores da Bolsa que consideram a arte mais rentável que ações. Quem não pensa na valorização futura da obra pensa, principalmente, na harmonia com o sofá da sala.
“Grande parte do mercado é sustentado pela decoração. Tanto é assim que, de vez em quando, o comprador liga para a galeria e pergunta: ‘De quem é mesmo essa gravura?’”, relata a galerista Mônica Filgueiras. Para esse sistema em que todos tateiam no escuro contribuiu também o fim da crítica de artes plásticas na imprensa.
Esse processo, que começou na década de 80 e se solidificou nos anos 90, transformou a cobertura de artes plásticas em mero guia informativo. “Isso aconteceu, em parte, porque a imprensa abriu mão desse papel e, em parte, porque há uma tentativa hegemônica, que é a arte dita de vanguarda, e a verdadeira crítica atrapalharia”, avalia o crítico Jacob Klintowitz.
A reflexão, quando existe, integra o sistema de arte, ou seja, é feita por curadores e, em geral, é ininteligível. “Isso é algo deliberado”, aposta Olívio Tavares de Araújo. “O poder é mantido através da exclusão. Escrever difícil é uma estratégia voluntária de ocupação de espaço.” E o espaço foi mesmo ocupado. Escasseadas as grandes obras dos modernistas – todas nas mãos de colecionadores –, o dinheiro empregado em arte voltou-se para a dita novidade. “Quem tem os bons quadros de Di Cavalcanti, Pancetti, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Segall ou Ismael Nery não quer vender”, observa o marchand Valdemar Szaniecki. Esses artistas ainda têm os mais altos preços do mercado, mas há certas obras de Di Cavalcanti que custam o mesmo que um quadro de Beatriz Milhazes.
“Você compra um Di Cavalcanti da década de 50 por R$ 150 mil. Não podemos nos esquecer de que é o mercado de um país pobre em que não existe a cultura das artes plásticas. Tanto que mesmo um Di por R$ 150 mil pode não ser vendido. Quem diz que o mercado está aquecido é a imprensa, é o promotor do leilão”, afirma Szaniecki.
Os jovens galeristas discordam. Ricardo Trevisan, da Casa Triângulo, que trabalha com artistas de 25 a 50 anos, não reclama dos negócios. “Não dá é para ficar olhando para trás. E tem de ir para o mercado internacional. Se você trabalha com um artista emergente, você cresce com ele.” Na Casa Triângulo, há desde gravuras a R$ 500 até instalações de Sandra Cinto (1968), avaliadas em US$ 30 mil.
De preço em preço, fica claro que a discussão sobre artes plásticas – como de resto sobre várias áreas de cultura – é, sobretudo, uma discussão sobre números. E, como contra a hegemonia quase ninguém está disposto a remar, a caixa-d’água é o Brecheret destes anos 2000. Na lógica do mercado, a capacidade de criar beleza parece não mais contar.

1 comment:

monografia básica said...

Muito boas essas colocações. tenho ouvido coisas semelhantes, em relação, inclusive, a Van Gogh. "Girassóis de Van Gogh?... deixa isso pra lá, coisa do passado"... Estão renegando toda a história das artes plásticas. E viva o macaco da novela global! É o que querem...
Gostaria de saber se permite que eu copie esse texto para um blog acadêmico que administro: http://sobreartesvisuais.blogspot.com/
Um abraço.